Biomorfos: a Reinvenção do Ser
“O pensamento ecológico se desdobra em questões sobre ciborgues, inteligência artificial e a incerteza irredutível quanto ao que pode ser considerado uma pessoa. Ser uma pessoa significa nunca ter certeza de ser uma pessoa.”
Timothy Morton (O Pensamento Ecológico)
Para que seres — sencientes ou não — sejam considerados pessoas, é preciso mais que a mera classificação biológica. Isso implica analisar uma rede complexa de critérios que atravessam o cognitivo, o social e também o filosófico. Campos em constante revisão, tensionados por avanços tecnológicos, debates éticos e transformações culturais. Nesse contexto, o estado híbrido da vida, em que fronteiras entre o natural e o artificial se diluem, surge como possibilidade concreta para um presente-futuro em construção. Um tempo em que natureza, ciência e humanidade não atuam mais em esferas separadas, mas sim como vetores interdependentes que moldam novas expressões da matéria.
Esse território transitório interligado por uma rede de conexões que promove a coexistência em um mesmo corpo, seja ele terrestre, celular ou cibernético, passa a ser entendido como plataforma de inscrição e negociação entre tecnologias da existência. Essa mistura entre os universos sintético e orgânico — e todas as possibilidades de vida expandida que eles nos propiciam — é discutida em “Biomorfos: A Reinvenção do Ser”, tema da 14ª edição da Mostra 3M de Arte, que ocorre no Parque da Luz, em São Paulo.
A mostra reúne obras site-specific de seis artistas de diferentes localidades do Brasil que, em comum, tratam do universo híbrido e metamórfico em suas produções. Dessa forma, o biomorfismo revela-se como uma ferramenta potente para pensar essa reinvenção. Ao evocar formas inspiradas nos organismos vivos — muitas vezes com o auxílio de tecnologias digitais, biotecnológicas ou mecânicas —, ele nos convida a imaginar criaturas especulativas, metamórficas, que desestabilizam nossas noções fixas de identidade, espécie, corpo e tempo. Nesse universo, os limites entre o real e o imaginário tornam-se porosos, permitindo vislumbrar futuros não hegemônicos, inclusivos e radicalmente interconectados.
A escolha do Parque da Luz para tal acontecimento dialoga diretamente com o pensamento biomórfico. O mais antigo parque da capital paulista foi concebido como um jardim botânico e passou, também ele, por inúmeras transformações urbanas e sociais que acompanharam o crescimento da cidade. Esse reduto natural e central é circundado por equipamentos culturais que prolongam os modos de expressão ambiental. A cultura, como propõe o filósofo Merleau-Ponty, emerge da natureza, como uma forma simbólica de organização da vida sensível.
A ambiguidade, tão própria do pensamento ecológico contemporâneo, torna-se também uma chave crítica. É no acolhimento da incerteza, da multiplicidade e da impermanência que residem as possibilidades de uma ética expandida da convivência — uma ética que reconhece a agência de seres não-humanos, máquinas e ambientes. Assim, o biomorfismo deixa de ser apenas uma referência formal à biologia e torna-se uma estratégia de construção de outros mundos possíveis.
Ana Carolina Ralston
Curadora